A Traição de Burke: Uma Refutação Moral a Yoram Hazony, o Filósofo Favorito da Direita Woke
Tradução: Heitor De Paola
Que tipo de conservadorismo troca a herança de Edmund Burke pelo romance de um homem forte de Budapeste, enquanto despreza o legado de George Washington? Yoram Hazony, uma das vozes mais altas da autointitulada "Nova Direita", apresenta-se como um guardião da tradição de Burke. No entanto, sua visão não é burkeana; é bolchevique em temperamento e jacobina em cadência — disfarçada na linguagem da tradição enquanto busca derrubar a própria herança que ela finge proteger. Hazony não conserva. Ele substitui. Ele não lembra. Ele reescreve.
O que ele oferece em Conservadorismo: Uma Redescobrimento não é uma recuperação, mas uma revisão radical — que interpreta mal o liberalismo, deturpa a história e confunde reação com restauração.
O argumento de Hazony, enquadrado como uma crítica ao "liberalismo iluminista", não é apenas conceitualmente confuso. É fundamentalmente ingrato. Em suas mãos, o maior período de florescimento humano da história registrada é descartado como um fracasso. O liberalismo, que conteve a tirania, libertou a consciência e tornou possível a dissidência pacífica, é apresentado não como algo a ser preservado, mas como algo a ser superado. Esta não é a voz de um conservador. É a voz de um jacobino voltado para si mesmo.
No entanto, este ensaio não é meramente uma refutação de Hazony. É a defesa de algo mais profundo: uma herança viva — uma aliança — frequentemente caricaturada ou descartada. Uma aliança não é uma teoria a ser ensinada, mas uma memória a ser vivida — uma herança moral compartilhada, sustentada não por compulsão, mas por consentimento. O liberalismo, corretamente entendido, não é a ideologia que Hazony imagina. É a tradição cultural que Burke passou a vida defendendo. Não é um projeto, mas um vínculo: um vínculo que equilibra liberdade com restrição, direitos com deveres e fé com dúvida. É isso que Hazony não consegue ver e que não podemos nos dar ao luxo de esquecer.
Chamar Burke de liberal não é um anacronismo, mas um reconhecimento de seu papel na formação da tradição da liberdade ordenada. Embora nunca tenha usado o termo em seu sentido moderno, Burke defendeu o que o liberalismo viria a significar: o equilíbrio entre liberdade e moderação, tradição e reforma e direitos individuais e dever moral. Como parlamentar Whig, ele defendeu a tolerância religiosa, opôs-se ao poder arbitrário e defendeu o Estado de Direito como uma herança cultural, em vez de uma construção racional. Seu apoio aos colonos americanos, sua indignação com os abusos britânicos na Índia e sua oposição à Revolução Francesa fluíram de uma única intuição moral: a de que a liberdade deve ser preservada dentro da estrutura da ordem herdada. Nesse sentido, Burke não era apenas um conservador de sua época — ele foi um dos fundadores da própria tradição liberal conservadora que os pós-liberais agora caracterizam erroneamente como inautêntica.
Hazony afirma que o conservadorismo é, em essência, empírico. Mas Burke sabia mais. O conservadorismo não é a ciência dos costumes. É o romance da herança. Ele não se limita a contabilizar o que funcionou. Ela ama o que perdurou. Burke defendeu a constituição britânica não apenas porque ela funcionava bem, mas porque significava algo — porque falava da história ininterrupta de um povo, seus sacrifícios e suas obrigações sagradas. Conservadorismo sem romance é contabilidade. E contabilidade não pode comover a alma.
No entanto, Hazony, como um homem que coleta pedras para construir seu próprio monumento, levanta apenas os fragmentos de Burke que lhe convêm, descartando o restante.
O liberalismo não é uma ideologia no sentido moderno. Não é um tratado a ser imposto ao mundo, nem um conjunto de fórmulas a serem aplicadas de cima para baixo. É um pacto — uma herança moral transmitida por hábito, moderação, memória e confiança. Não nasceu em salões nem foi convocado à existência por declarações. Surgiu da experiência vivida por povos de língua inglesa ao longo de séculos: dos costumes das aldeias e do direito comum, das assembleias locais e da vida paroquial, do trabalho lento e muitas vezes doloroso de aprender a viver juntos em liberdade. O que chamamos de liberalismo floresceu não na teoria, mas na prática — e só mais tarde filósofos como Locke e Montesquieu tentaram dar sentido ao que já havia começado a criar raízes.
Essa distinção importa. A crítica de Hazony se baseia em um erro: ele confunde liberalismo com abstração, especificamente com universalismo racionalista, quando sua verdadeira força sempre residiu na cultura e na comunidade. Ele ataca o racionalismo iluminista como se fosse a raiz do liberalismo ocidental. Mas isso inverte a história. A cultura da liberdade precedeu suas justificativas teóricas. Os fundadores americanos, sob essa luz, não foram revolucionários derrubando a tradição, mas herdeiros que a defenderam — codificando em lei o que há muito tempo era vivido na prática. A Constituição dos EUA, como a Magna Carta antes dela, não foi um projeto a partir de princípios básicos, mas uma cristalização de expectativas morais já arraigadas no povo.
O liberalismo não se mantém vivo por tinta e pergaminho, mas pelos rituais diários de uma cultura autogovernada. Uma criança não se torna cidadã porlendo John Locke. Ele se torna um ao aprender, lentamente, que não pode tomar o que não é seu, que deve falar com civilidade, que deve ouvir antes de julgar e que seus direitos coexistem com os deveres. A liberdade, em uma sociedade liberal, não é a indulgência dos fortes. É a contenção dos capazes. E essa contenção não é imposta pelo Estado, mas cultivada em casa, no playground, na paróquia e no bar.
O milagre da civilização liberal não é ter inventado direitos, mas sim ter cultivado os hábitos necessários para defendê-los. Essa foi a percepção central de Burke — que uma sociedade livre não pode sobreviver apenas pela razão, mas deve se basear na sabedoria acumulada de gerações, incrustada nos costumes, na memória e na formação moral. Quando essa memória falha, quando a cultura esquece os sacrifícios e as disciplinas que a liberdade exige, todas as garantias de papel do mundo não a salvarão. Um direito é tão forte quanto a disposição das pessoas em honrá-lo quando ele é inconveniente.
Aqui, então, está o cerne da questão. Hazony não está apenas errado sobre o liberalismo. Ele está errado sobre o que deve ser conservado. Ele trata o liberalismo como uma ideologia a ser destronada, em vez de como a herança da própria civilização que afirma defender. E, em sua pressa em desbancar uma abstração, corre o risco de fortalecer outra — muito mais frágil e perigosa.
Hazony inicia Conservatism: A Rediscovery com uma afirmação ousada: que o "liberalismo iluminista" se tornou a ideologia dominante nos Estados Unidos na década de 1960 — "a nova estrutura dentro da qual a vida política americana era conduzida". Mas mesmo esse movimento inicial é instável. Por um lado, nunca fica totalmente claro o que Hazony quer dizer com "liberalismo iluminista". Ele não oferece nenhuma taxonomia séria, nem tenta distinguir entre as várias tradições do pensamento liberal. Ele agrupa o racionalismo cartesiano, o empirismo deturpado de Locke, o Contrato Social de Rousseau e a Paz Perpétua de Kant como se tudo fluísse de uma única torneira marcada como "razão". Ao fazê-lo, ele reduz o liberalismo a um espantalho — abstrato, estéril e totalmente divorciado da cultura ou da memória.
Ele parafraseia Locke como sustentando que:
"Todos os homens são perfeitamente livres e iguais por natureza; a afirmação de que a obrigação política surge do consentimento do indivíduo livre, de modo que os indivíduos humanos não têm obrigações políticas a menos que concordem com elas; a afirmação de que o governo existe devido ao consentimento de um grande número de indivíduos, e seu único propósito legítimo é permitir que esses indivíduos façam uso da liberdade que lhes é natural; e a suposição de que essas premissas são verdades universalmente válidas, que cada indivíduo pode derivar por si mesmo, se assim o desejar, raciocinando sobre essas questões."
Mas isso é uma distorção — menos uma leitura de Locke do que uma efígie conveniente. Sim, Locke é uma figura importante no pensamento liberal, mas tratar suas abstrações como representativas do liberalismo como um todo é intelectualmente desonesto. O liberalismo não nasceu com Locke, e Locke nunca afirmou defini-lo. Ele, ao contrário de Hazony, entendia que filosofia não é soberania. Hazony, por outro lado, constrói uma fantasia a partir de fragmentos — selecionando o que lhe desagrada para construir um inimigo que ele possa então denunciar com justiça. Ele não analisa o liberalismo. Ele o substitui por uma fábula.
E Locke não é o único sujeito a esse método. Hazony aplica a mesma leitura seletiva ao próprio Burke. Ele cita as advertências de Burke contra a Revolução Francesa como se elas autorizassem uma reação antiliberal, mas dá pouca atenção à apaixonada defesa de Burke da liberdade americana, seu apoio à tolerância religiosa e sua reverência pelo direito consuetudinário. O conservadorismo de Burke estava enraizado na humildade, não na dominação — na dignidade moral da tradição, não na imposição da ortodoxia. Mas Hazony adota apenas as linhas que parecem endossar seu projeto e descarta o restante. Isso não é erudição. É montagem por omissão.
Por trás desse método, reside uma confusão ainda mais profunda. Toda a visão de Hazony se baseia em uma dicotomia frágil: conservadorismo ou liberalismo, tradição ou razão, ordem à custa da liberdade individual. Mas isso é uma invenção moderna, não uma leitura fiel da tradição anglo-saxônica. O erro central de todo o projeto de Hazony é sua falsa oposição entre conservadorismo e liberalismo — uma dicotomia que nenhum verdadeiro burkeano jamais aceitaria. A herança inglesa que Burke buscava defender era tanto conservadora quanto liberal — ancorada na tradição, mas comprometida com a liberdade. Não era o universalismo abstrato que animava Burke, mas uma profunda confiança nas liberdades herdadas, na tolerância religiosa e nas restrições do direito consuetudinário. Ao dividir a tradição em duas, Hazony não a esclarece. Ele a mutila.
Isso não é uma leitura equivocada pontual. É um método. Quer citando Locke, caricaturando Burke ou invocando o protestantismo, Hazony seleciona apenas os fragmentos que confirmam sua tese, descarta o resto e transforma os resquícios em uma ficção reconfortante. Sua visão não é histórica. É polêmica.
A realidade é exatamente o oposto. O liberalismo, devidamente compreendido, não nasceu da teoria, mas da tradição. Não foi convocado por filósofos e panfletários, mas emergiu da vida moral vivida por uma civilização específica — anglo-americana, protestante e constitucional — muito antes de ter um nome. E o que Hazony chama de "liberalismo iluminista", um conceito que ele resume em liberalismo no sentido mais amplo imaginável, não foi um parasita da cultura protestante, nem mesmo seu herdeiro. Ao contrário, ambos eram expressões de algo maior: um pacto civilizacional enraizado na dignidade da pessoa, na integridade da consciência e na santidade dos limites.
Vale lembrar também que o protestantismo não floresceu em desafio ao liberalismo, mas dentro dele. A liberdade de culto de acordo com a consciência — o próprio fundamento da cultura moral protestante — foi, em si, fruto da tolerância liberal. Sem as salvaguardas culturais das instituições liberais, a Reforma teria sido lembrada não como um movimento, mas como um massacre. Dissidentes ingleses, evangélicos americanos, refugiados huguenotes — todos devem sua sobrevivência não à imposição nacionalista, mas à contenção liberal. Não foi a imposição de uma verdade religiosa singular, mas a recusa, baseada em princípios, em impô-la, que deu aos valores protestantes espaço para se aprofundarem e perdurarem.
A tradição liberal sempre conteve em si uma tensão viva — entre a celebração da razão entre os filósofos e a fé dos cidadãos comuns; entre a especulação abstrata e a contenção moral herdada. Não se trata de uma ideologia frágil, mas de uma forma cultural suficientemente ampla para conter a contradição. Sua beleza reside nessa mesma tensão: em sua recusa em expurgar a dúvida ou em resolver a complexidade pela força. Onde outros impõem a unidade por meio do dogma, o liberalismo a preserva por meio da confiança.
É por isso que, em 1790, George Washington, longe de classificar o liberalismo como uma imposição estrangeira, escreveu com confiança: “À medida que a humanidade se torna mais liberal, estará mais apta a permitir que todos aqueles que se comportam como membros dignos da comunidade tenham igual direito à proteção do governo civil. Espero sempre ver a América entre as nações mais destacadas em exemplos de justiça e liberalidade.” Isso não era racionalismo iluminista — era memória da aliança. Era um reflexo da cultura que ele conhecia e servia: uma cultura que valorizava a ordem, o dever e a liberdade em igual medida.
A afirmação de Hazony de que o nacionalismo protestante foi substituído na década de 1960 pela ideologia liberal não é convincente, tanto em termos históricos quanto morais. Na verdade, o liberalismo que começou a vacilar nos anos do pós-guerra já era uma pálida imitação da tradição mais antiga — uma casca processual esvaziada de conteúdo cultural. A tragédia do século XX não foi o triunfo do liberalismo sobre o protestantismo, mas sim o fato de ambos terem sido esvaziados pelo avanço da tecnocracia, do consumismo e da abstração ideológica.
O relato de Hazony se enfraquece ainda mais quando ele alega que a suposta hegemonia do liberalismo fomentou um universalismo delirante. À parte a tese mal compreendida de Francis Fukuyama sobre o Fim da História, poucos liberais sérios jamais alimentaram tais ilusões triunfalistas. De Burke a Tocqueville e Berlin, a tradição liberal tem sido marcada por um realismo trágico, não por sonhos utópicos. O fato de Hazony confundir um único filósofo especulativo com uma doutrina universal revela desleixo ou estratégia. Ele evoca um falso liberalismo — a-histórico, estéril e arrogante — apenas para queimá-lo e instalar uma ortodoxia apoiada pelo Estado em seu lugar.
Essa tática não é exclusiva de Hazony. É um método compartilhado entre os reacionários pós-liberais — aqueles que se revestem de tradição enquanto desprezam as tradições que nunca compreenderam. Sejam integralistas católicos, demagogos populistas ou ideólogos ortodoxos, todos seguem o mesmo padrão: identificam as cinzas da cultura liberal e as declaram prova de que o fogo nunca valeu a pena ser aceso.
Hazony afirma que o liberalismo entrou em colapso entre 2016 e 2020. Ele cita a ascensão de Donald Trump, o Brexit e as vitórias nacionalistas no exterior. Mas o que ele apresenta como a ruína do liberalismo é, na verdade, o liberalismo continuando a evoluir. Governos populistas foram eleitos. Eles foram criticados. Alguns caíram. Outros resistiram. O sistema se manteve. Não houve expurgos, golpes, polícia secreta. Houve discussões, eleições e transferências pacíficas de poder. Essa é a glória do liberalismo — não sua fraqueza *.
Hazony então volta sua ira para a ideologia "woke", observando corretamente sua captura de instituições. Mas, mais uma vez, ele tira a conclusão errada. O fato de tal ideologia poder ser nomeada, criticada e contestada eleitoralmente é uma marca da resiliência do liberalismo — não de sua decadência. A alternativa proposta por Hazony não teria essa capacidade de autocorreção. Trocaria dissidência por dogma, correção por conformidade.
Ele admitiu tacitamente — ou pelo menos se inclina — ao espetáculo do Partido Comunista Chinês. No início do livro, ele argumenta que a antiga esperança liberal de "comércio produzindo liberdade" ruiu sob o governo de Xi Jinping, provando a ingenuidade do liberalismo. Esse julgamento está parcialmente correto e totalmente retrógrado. A prosperidade da China não surgiu da sabedoria autoritária; foi fertilizada pelo acesso a mercados liberais, capital liberal e confiança liberal. Sua elite estudou em Harvard e na LSE, não em Pyongyang. Seu crescimento é parasitário de uma ordem que não construiu — e agora busca minar.
E, no entanto, Hazony invoca o sucesso de Pequim com um tom desconfortavelmente próximo da inveja, como se a capacidade do PCC de coesão nacional fosse uma evidência contra a civilização liberal. Isso não é apenas errado; é humilhante. Citar Burke enquanto se empresta a estética de Pequim não é conservadorismo; é incoerência. A China que Hazony aponta é uma ilusão: um império frágil de colapso demográfico, desilusão juvenil, corrupção endêmica e excesso de alcance estratégico. É uma ficção feita sob medida para olhares estrangeiros, acreditada apenas por aqueles que precisam de tal miragem para justificar sua própria revolta contra a herança liberal. [ênfase do tradutor]
A solução proposta por Hazony é o "nacionalismo bíblico". No entanto, enquanto Burke via a religião como uma herança moral, Hazony a elevava à ortodoxia cívica. Ele defende a observância do Shabat, a demonstração pública dos Dez Mandamentos e a deferência governamental explícita à autoridade bíblica — deveres públicos que colocam a neutralidade liberal de lado. A reverência corre o risco de se tornar retórica imposta por lei. Fé coagida é fé diminuída.
E assim retornamos a Burke, que alertou que a liberdade sem virtude entraria em colapso, mas que a virtude sem liberdade se tornaria tirania [idem]. Ele entendia que a tarefa do conservador não era destruir o liberalismo, mas repará-lo — preservar as instituições que restringem nossos piores instintos e reformar delicadamente os costumes que não nos servem mais. É isso que precisamos recuperar: não uma ideologia abstrata, não um dogma, mas um pacto — uma ordem moral silenciosa que o tempo tornou sagrada [idem].
O pacto do liberalismo não é uma fórmula universal. É uma herança viva. Ele nos liga não à teoria, mas a uma tradição — liberdade equilibrada com a lei, liberdade com o dever e memória com esperança. Sobreviveu a revoluções, guerras e a todo fanatismo da época. Sobreviverá a Hazony também — se nos lembrarmos do que é.
Mas somente se nos lembrarmos dele — não com slogans ou sentimento, mas com fidelidade viva ao pacto que herdamos e à liberdade que ele ainda ousa manter viva.
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* NOTA DO EDITOR/TRADUTOR: neste ponto o autor do artigo se equivoca, pois parece não ter tomado conhecimento da contestação das eleições americanas de 2020 e brasileira de 2022, das tentativas de assassinar Bolsonaro e Trump e recentemente do candidato liberal-conservador na Colômbia. Na Europa, do processo contra Marine Le Pen, da investigação a la GESTAPO contra o AfD na Alemanha, do cancelamento das eleições na Romênia. Na Ásia da ingerência chinesa e coreana do norte nas eleições da Coreia do Sul e na política do Japão.
HEITOR DE PAOLA