AS BASES DO PENSAMENTO DE JAVIER MILEI - IV
Discurso pronunciado na formatura da Faculdade de Direito e Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires, em 24 de maio de 1880, ocasião em foi nomeado Membro Honorário da Faculdade.
A ONIPOTÊNCIA DO ESTADO É A NEGAÇÃO DA LIBERDADE INDIVIDUAL
Juan Bautista Alberdi (1880)
Tradução: HEITOR DE PAOLA
Discurso pronunciado na formatura da Faculdade de Direito e Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires, em 24 de maio de 1880, ocasião em foi nomeado Membro Honorário da Faculdade. Em função da precariedade da sua saúde só conseguiu pronunciar umas poucas palavras. Enrique Garcia Merou, jovem estudante da Faculdade, completou a leitura.
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Uma das raízes mais profundas das tiranias modernas da América do Sul é a noção greco-romana de patriotismo e de Pátria, que devemos à educação clássica que nossas Universidades copiaram da França. A Pátria, tal como a entendiam os gregos e romanos, era esencial e radicalmente oposta ao que entendemos em nossos tempos e sociedades modernas. Era uma instituição de origem e caráter religioso e santo, equivalente à Igreja de hoje, se não mais santa ainda, pois era a associação das almas, das pessoas e dos interesses de seus membros. Seu poder era onipotente e sem limites em relação aos indivíduos que a compõem.
A Pátria, assim entendida, era e tinha que ser a negação da liberdade individual na qual se baseiam todas as sociedades modernas que são realmente livres. O indivíduo se entregava completamente à Pátria; entregava sua alma, sua Pessoa, sua vontade, sua fortuna, sua vida, sua familia, sua honra. Se a entrega não fosse total era traição, como um ato de impiedade. Segundo estas doutrinas o patriotismo era não apenas conciliável como idêntico ao despotismo mais absoluto e total na ordem social.
A grande revolução que trouxeram as idéias cristãs para as noções de homem, Deus, da família, de toda a sociedade, mudou radical e diametralmente as bases do sistema greco-romano. Não obstante, o renascimento da civilização antiga das ruínas do Império Romano e a formação dos Estados modernos conservaram ou fizeram reviver os cimentos da civilização passada e morta, não mais nos interesses dos próprios Estados, ainda sem forma definida, senão na majestade de seus governantes nos quais era personificada a majestade, a onipotência e autoridade da Pátria. Esta a origem das monarquias absolutas que surgiram da organização feudal na Europa regenerada pelo Cristianismo. O Estado, a Pátria, continuou onipotente em relação a cada um dos seus membros; mas a Pátria agora personificada em seus monarcas ou soberanos, não nos seus povos. A onipotência dos reis tomou o lugar da onipotência do Estado ou da Pátria. Aqueles que não chegaram a dizer “O Estado sou Eu”, certamente pensaram e acreditaram que assim era, tanto quanto aquele que o disse.
Sublevados contra os reis, os povos os substituíram no exercício do poder da Pátria, certamente mais legítimo quanto à sua origem. A soberania do povo tomou o lugar da soberania dos reis, ao menos teoricamente. A Pátria conservou todo o poder de direito, mas conservando a índole original de poder absoluto e total sobre a pessoa de cada um dos seus membros; a onipotência da própria Pátria, na República, seguiu sendo a negação da liberdade do indivíduo, da mesma forma que na monarquia; mas a sociedade cristã e moderna, na qual o homem e seus direitos são teoricamente o principal, continuou na realidade sendo governada pelas regras das sociedades antigas e pagãs, nas quais a Pátria era a negação mais absoluta da liberdade. Divorciado da liberdade o patriotismo se uniu à glória, entendida da mesma forma que os gregos e romanos a entendiam.
Esta a condição que impera nas sociedades de origem greco-romanas nos dois mundos. Seus indivíduos não são livres, são servos da Pátria. Esta é livre quando não depende do estrangeiro: mas o indivíduo carece de liberdade enquanto depende do Estado de modo total e absoluto. A Pátria é livre quando absorve e monopoliza as liberdades de todos seus indivíduos; mas estes não o são porque o Governo detém todas as suas liberdades.
Este é o regime social produzido pela Revolução Francesa; e é este exemplo que foi seguido pelas sociedades políticas na América greco-latina, segundo o modelo e a repetição da Revolução Francesa que se mantém na atualidade. O “Contrato Social” de Rousseau, convertido em catecismo de nossa revolução por seu ilustre corifeu, o Doutor Moreno [[1]], vem governando nossa sociedade, na qual o cidadão seguiu pertencendo ao Estado ou à Pátria encarnada e personificada nos seus Governos como representante natural da majestade do Estado onipotente. A onipotência do Estado segundo as regras das sociedades antigas da Grécia e de Roma, foi a razão de ser de seus Governos, chamados livres somente porque seus poderes deixaram de emanar do estrangeiro.
Outro foi o destino e a condição da sociedade que povoa a América do Norte.
Esta sociedade, radicalmente diferente da nossa, deveu à origem transatlântica de seus habitantes saxões, a direção e complexidade de seu regime político de governo no qual a liberdade da Pátria teve como limite a liberdade sagrada do indivíduo. Os direitos do homem equilibraram em seu valor aos direitos da Pátria e se o Estado se tornou livre do estrangeiro, os indivíduos não foram menos livres em relação ao Estado. Assim foi na Europa a sociedade anglo-saxônica, e assim foi na América do Norte a sociedade anglo-americana, ambas caracterizadas pelo desenvolvimento soberano da liberdade individual além da liberdade exterior ou independência do Estado. Esta característica se deveu principalmente à geografia insular da Inglaterra e ao isolamento transatlântico dos Estados Unidos.
Em ambos os povos saxões a liberdade não consistiu em ser independente do estrangeiro, mas no fato de que cada cidadão era independente do Governo pátrio. Os homens foram livres porque o Estado e o poder do seu Governo não foi onipotente, tendo o Estado um poder limitado pela esfera da liberdade e do poder de seus membros. Isto porque não sofreram a influência do modelo das sociedades grega e romana.
Montesquieu disse que a Constituição inglesa nasceu nos bosques da Germania, dos destruidores Germanos do Império Romano, que eram livres porque seu Governo não era de origem latina. À liberdade dos indivíduos, que é a liberdade por excelência, devem os povos do norte a opulência que os distingue.
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Os povos do norte não devem sua opulência e grandeza ao poder dos seus Governos mas ao poder dos indivíduos. São mais o produto do egoísmo que do patriotismo. Ao realizar sua própria grandeza particular, cada indivíduo contribuiu para construir a do seu País [[2]]. Esta é uma lição que deveria ser estudada para conseguir salvar as repúblicas americanas de origem latina. Seus destinos deverão sua salvação ao individualismo, ou jamais serão salvos se esperam que alguém os salve por patriotismo. O egoísmo dos cidadãos somente é um vício para o egoísmo dos Governos que personificam os Estados. Na realidade, a busca do próprio engrandecimento é o motor virtuoso da grandeza do indivíduo como fator fundamental da ordem social, da família, da propriedade, do lar, do poder e bem estar de cada homem.
As sociedades que esperam sua felicidade pelas mãos de seus Governos esperam algo absolutamente contrário à natureza. Pois pela natureza das coisas cada homem tem o encargo providencial de seu próprio bem estar e progresso, porque ninguém pode amar o engrandecimento do outro como ao seu próprio; não existe meio mais poderoso e eficaz de contribuir para a grandeza do corpo social do que deixar a cada um dos seus membros individuais o cuidado e o poder pleno de produzir seu próprio engrandecimento. Esta é a ordem da natureza e por isto é melhor e mais fecundo. Disto é testemunho a história das sociedades saxônias do norte, nos dois mundos. Os Estados são ricos pelo trabalho de seus indivíduos e este trabalho é fecundo porque o homem é livre, dono e senhor de sua pessoa, de seus bens, de sua vida, de seu lar.
Quando o povo destas sociedades necessita alguma obra ou melhoramento público os homens se reúnem, discutem, encontram acordos em vontades comuns a todos e põem mão à obra eles mesmos, executando todo o trabalho necessário.
Nos povos de origem latina os indivíduos que necessitam algum trabalho de melhoramento geral, levantam os olhos para o Governo, suplicam, esperam que tudo venha de sua intervenção e acabam ficando sem água, sem luz, sem comércio, sem pontes ou portos se o Governo não providencia tudo.
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Não devemos esquecer que nem toda origem da onipotência do Estado e de seu Governo entre os sul-americanos foi grega ou romana. Esta seria a origem mediata, pois a fonte imediata da onipotência que afoga nossas liberdades individuais foi o organismo que a Espanha deu a seus Estados coloniais no Novo Mundo, o qual não foi diferente ao que a Espanha deu a si mesma no Velho Mundo. Assim, a raiz e origem de nossas modernas tiranias na América do Sul não é somente a herança remota greco-romana, mas também a nossa origem imediata do caráter espanhol. A Espanha nos legou a complexidade devida a seu passado de colônia romana antes de se tornar província romana [[3]].
A Pátria, em seu conceito territorial, absorveu sempre o indivíduo e encarnou em seus governos o direito divino e sagrado que eclipsou completamente os direitos do homem. A onipotência do Estado ou o poder total e ilimitado da Pátria sobre os indivíduos que a compõem tem por conseqüência necessária a onipotência do Governo que personifica o Estado, quer dizer, o despotismo puro e simples. E não existe outro meio de conseguir que o Governo deixe de ser ou não chegue a ser onipotente senão fazendo com que o próprio Estado deixe de ser ilimitado com relação ao seu poder sobre o indivíduo, fator elementar de seu povo. Um exemplo disto: quando o Governador de Buenos Aires recebeu em 1835 a soma de todos os poderes públicos não o obteve pela lei, como aparentava. A lei, longe de ser a causa e origem deste poder, foi antes conseqüência dele, que já existia nas mãos do Chefe de Estado onipotente pela Ordenanza de Intendientes, constituição espanhola do Vice-Reinado de Buenos Aires. Segundo esta, o Vice-Rei deveria continuar sendo o Governador e Capitán General com o poder total e as faculdades extraordinárias que lhe concedia a Ley de las Indias.
A contextura que o governo hispano-argentino recebeu desta legislação é a mesma da qual derivaram suas leis posteriores à revolução [[4]] que até hoje não reconstruíram este aspecto; e a República, tal como o Vice-Reinado colonial, seguiu entendendo o poder da Pátria sobre seus membros como era entendido nas antigas sociedades grega e romana.
Apesar de nossas constituições modernas serem copiadas das que governam os países livres de origem saxônica, a nenhum liberal ocorreria duvidar que o direito do indivíduo devesse se inclinar e ceder ante o direito do Estado em certos casos. A República, portanto, continuou sendo governada para proveito dos poderes públicos que substituíram o poder especial que, quando colônia, convinha ao real e imperial benefício.
A coroa da Espanha não fundou suas colônias para fazer a riqueza e poder de seus colonos, mas para fazer negócio em proveito próprio. Mas para que este objetivo não degenerasse num sistema capaz de dar riqueza e poder aos colonos, em lugar de dá-los ao monarca, a colônia recebeu a Constituição social e política que tornaria seu povo um mero instrumento do patrimônio real, um simples produtor fiscal da conta do seu governo e para seu real benefício [[5]]. Não há dúvida de que as Constituições que regulamentaram depois a conduta do Governo da República qualificaram de crime legislativo o ato de dar poderes extraordinários e ilimitados aos seus governantes; porém, esta magnífica disposição não impediu que a soma de todos os poderes e forças econômicas do país caíssem de fato nas mãos discricionárias do Governo, que pode usá-los por mil meios indiretos.
Como assim?
Se for deixado nas mãos da Pátria, do Estado, a soma do poder público, será deixado nas mãos do Governo que representa e administra o Estado esta imensa soma de poder. Se isto for feito por meio de uma Constituição será uma máquina produtora de um despotismo tirânico que não deixará de aparecer em algum momento pela simples razão de existir a máquina que lhe servirá de causa e ocasião suficiente. Por Constituição entendo aqui não a lei escrita à qual damos este nome, mas à compleição e construção real da máquina do Estado. Se esta máquina é um fato da história do País, em vão a Constituição escrita poderá limitar os poderes do Estado sobre os direitos de seus indivíduos; estes poderes continuarão sendo onipotentes de fato.
São testemunhos confirmatórios desta observação os governos republicanos que substituíram na direção do Estado moderno àquele que fundou, organizou e conduziu o País por séculos como colônia pertencendo a um Governo absoluto e ilimitado. Enquanto a máquina que torna onipotente o poder do Estado continue viva e palpitante de facto as Repúblicas poderão ser chamadas de livres e representativas em suas Constituições escritas: porém, sua constituição histórica e real, guardada em suas entranhas, fará com que permaneça sempre uma colônia, ou propriedade patrimonial do Governo Republicano como sucessor do Governo real do passado.
O primeiro dever de uma grande revolução feita com a pretensão de mudar o regime social do governo deverá ser o de mudar o contexto social que teve por objetivo fazer do povo colonial uma máquina fiscal produtora de força em proveito de seu dono e fundador da Metrópole. De outro modo, as rendas e produtos da terra e do trabalho anual do povo terão o mesmo destino que tinham sob a monarquia efetiva: aonde, por exemplo? A todas as partes, menos para as mãos do povo. As velhas arcas que eram recipientes do tesouro real se perderam como as águas de um rio que se espalha pelos campos e se dissipa ao regar a classe, ou porção do povo a quem coube o privilégio de continuar ocupando a esfera do antigo poder metropolitano, quais sejam, o gozo dos benefícios que a máquina real seguirá tirando do solo e do trabalho do país. Nas mãos dessa porção ou classe privilegiada do país oficial seguirá existindo o poder e a liberdade dos quais será excluído e privado o povo - sucessor nominal dos antigos soberanos. Não será o Estado, mas seu representante (que é o Governo do Estado) que seguirá exercendo e gozando a onipotência dos meios e poderes entregues à Pátria pela máquina do velho edifício colonial persistente.
Porém, deixar nas mãos do Governo da Pátria todo o poder público adjudicado à própria Pátria, significa deixar os cidadãos que a compõem sem o poder individual, a liberdade individual, que é a única liberdade real dos países que governam a si mesmos, que se educam, que enriquecem e engrandecem pelas mãos do povo, e não dos governos. Os antigos, diz Coulanges [[6]] “deram tal poder ao Estado que no dia em que um tirano tomava em suas mãos esta onipotência, os homens já não tinham nenhuma garantia contra ele, o verdadeiro senhor da vida e da fortuna de todos”.
Das considerações acima se deduz que o despotismo e a tirania comum nos países Sul-Americanos, não residem no déspota ou no tirano, mas na máquina ou construção mecânica do Estado, pelo qual todo poder de seus membros individuais, refundido e condensado, cede em proveito de seu Governo e fica nas mãos desta instituição. O déspota ou o tirano é o efeito e o resultado, não a causa da onipotência dos meios e forças econômicas do país postas em poder do estabelecimento de seu governo e do seu círculo pessoal que personifica o Estado pela máquina do próprio Estado. Submersa e afogada a liberdade dos indivíduos neste caudal de poder público ilimitado e onipotente, resulta que a tirania da Pátria, ilimitada e onipotente, será exercida em nome de um patriotismo que liquida com a liberdade do indivíduo, que é a liberdade patriótica por excelência. Assim se explica que nas sociedades antigas da Grécia e da Itália, nos quais este estado de coisas era a lei fundamental, as liberdades individuais de vida, de conduta, de pensamento, de opinião, foram completamente desconhecidas. O patriotismo tinha então nestas sociedades o lugar que tem o liberalismo nas sociedades atuais de tipo e origem anglo-saxônica. O despotismo recebia a sanção e a desculpa do patriotismo do Governo onipotente no qual a Pátria estava personificada.
A razão desta onipotência da Pátria entre os antigos é digna de ser levada em consideração pelos povos modernos, que tomam por modelo esses organismos mortos de índole e princípios e propósitos radical e essencialmente opostos (aos liberais).
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O que era realmente a Pátria e o patriotismo no sistema político e social das antigas sociedades grega e romana? Devemos insistir em explicá-lo.
A palavra Pátria entre os antigos, segundo Coulanges, significava a terra dos pais, a terra pátria. A pátria de cada homem era a parte do solo que sua religião doméstica ou nacional havia santificado: a terra onde estavam depositados os ossos de seus ancestrais e que permanecia ocupada por suas almas. Terra sagrada da Pátria, diziam os gregos. Este solo era literalmente sagrado para o homem daqueles tempos porque estava habitada por seus deuses. Estado, Pátria, Cidade: estas palavras não eram meras abstrações como para os modernos, mas representavam realmente todo um conjunto de divindades locais, com cultos diários e crenças poderosas sobre a alma. Só assim se explica o patriotismo entre os antigos: sentimento enérgico que era para eles a suprema virtude, na qual se fundiam todas as demais. Tal Pátria não era apenas um domicílio. O homem sentia-se a ela ligado por um vínculo sagrado. Tinha que amá-la como se ama uma religião, obedecer a ela como se obedece a um Deus, se dar a ela por inteiro, centrar tudo nela, consagrar-se a ela. O grego e o romano não morriam por desprendimento em função de um homem ou como ponto de honra; mas à sua Pátria deviam sua própria vida. Porque, se a Pátria era atacada, era a sua religião que era atacada, diziam eles.
Na guerra, combatiam verdadeiramente por seus altares, por seus lares, pro aris et focis [[7]]. Se os inimigos tomassem a cidade, seus altares eram derrubados, seus fogos sagrados extintos, suas tumbas profanadas, seus deuses destruídos, seu culto despedaçado. O amor à Pátria era a maior expressão de piedade para os antigos. Para eles, Deus não estava em todas as partes. Os deuses de cada homem eram aqueles que habitavam sua casa, sua cidade, seu cantão [[8]]. O desterrado, ao deixar sua Pátria, deixava também seus deuses. Mas como a religião era a fonte da qual emanavam os direitos civis, o desterrado perdia tudo isto ao perder a religião de seu país por efeito direto do desterro, portanto já não tinha mais direito a propriedades. Seus bens eram todos confiscados em proveito dos deuses e do Estado inimigo. Não tendo culto, não tinha mais família e deixava de ser marido e pai. O desterro da Pátria não parecia ser um suplício mais tolerável do que a morte. Os jurisconsultos romanos chamavam-no pena capital [[9]].
De onde nasciam estas noções de Pátria e patriotismo? Do fato de que a cidade havia sido fundada numa religião e era constituída como uma igreja. Daí advinha a força, a onipotência e o império absoluto que a Pátria exercia sobre seus membros. É concebível, pois, que numa sociedade estabelecida sobre tais princípios, a liberdade individual não pudesse existir. Não havia nada no homem que fosse independente, nem sua vida privada escapava ao poder onipotente do Estado. Os antigos não conheciam, pois, nem a liberdade da vida privada, nem a liberdade de educação, nem a religiosa. A pessoa humana contava muito pouco diante desta autoridade santa e quase divina que se chamava Pátria ou Estado.
Não é de se estranhar que, segundo estes precedentes históricos, mudados em seu sentido, induzissem os revolucionários franceses do século passado [[10]], imitadores inconscientes da antiga sociedade greco-romana, imitassem com exaltação estes modelos mortos. A funesta máxima revolucionária de que a saúde do Estado é a suprema lei da sociedade, foi formulada pela antiguidade greco-romana. Pensava-se então que o direito, a justiça, a moral, tudo devia ceder o passo ao interesse da Pátria. Não existiu, portanto, erro maior que o acreditar que nas antigas cidades o homem desfrutasse de liberdade. Nem tinha sequer idéia do que significa liberdade. Não concebiam que pudesse existir direito algum oposto à cidade e seus deuses.
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É bem verdade que revoluções posteriores mudaram esta forma de Governo. Porém, a natureza do Estado ficou quase igual. O Governo foi chamado sucessivamente monarquia, aristocracia, democracia; porém nenhuma dessas revoluções deu ao homem a única e verdadeira liberdade, que é a liberdade individual. Ter direitos políticos, votar, nomear ou eleger magistrados, poder ser um deles, era tudo o que se chamava liberdade. Mas o homem não estava menos submetido ao Estado do que antes.
Concebe-se que, falando com tal segurança de uma antiguidade tão remota e desconhecida com esta, me apoiei em autoridades que se especializaram no seu estudo quase técnico. As apresentadas acima, por exemplo, pertencem a uma das maiores capacidades da Escola Normal de França. Não é que a erudição alemã seja menos competente para interpretar a antiguidade em matéria de instituições sociais, mas a de um país latino como a França é mais compreensível para a América da mesma origem que, além disto, imitou sua revolução nos mesmos erros e caiu nos mesmos tropeços de que a ciência moderna dos franceses somente há poucos anos começou a se dar conta pela pena de pensadores como Aléxis de Tocqueville, de Coulanges, de Taine.
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Mas as coisas não ficaram assim na nascente ordem das sociedades civilizadas da Europa cristã. Já muito tempo antes que a grande religião produzisse a sua sociedade moderna, a própria sociedade antiga começara a mudar com a maturidade e progresso natural das idéias, das instituições e das regras de governo. Disto, sem dúvida, parece que não se dão conta os povos atuais que buscaram no renascimento da antiguidade civilizada os elementos e bases de organização da sociedade moderna. O Estado estava estreitamente ligado à religião, dela procedia e com ela se confundia, pois na cidade primitiva todas as instituições políticas foram instituições religiosas [[11]]. As festas eram cerimônias do culto; as leis eram fórmulas sagradas; os reis e magistrados eram sacerdotes. É por esta razão que a liberdade individual era desconhecida e que o homem não poderia subtrair sua própria consciência da onipotência da cidade. É por isto, enfim, que o Estado ficou limitado às proporções de uma vila sem poder se salvar do limitado recinto que seus deuses nacionais haviam traçado em sua origem.
Cada cidade tinha não somente sua independência, mas também seu culto e seus códigos. A religião, o direito, o governo, tudo era municipal. A cidade era a única força viva; nada acima dela, nem abaixo dela. Quer dizer, nem unidade nacional, nem liberdade individual. Este regime veio a desaparecer com o desenvolvimento do espírito humano e o princípio da associação entre os homens, os quais uma vez mudados, tanto o governo, quanto a religião e o direito perderam este caráter municipal que tinham na antiguidade.
Um novo princípio, a filosofia dos estóicos, ampliando as noções sobre associação humana, emancipou o indivíduo. Não se desejava mais que a pessoa humana fosse sacrificada ao Estado. Este grande princípio que a cidade antiga não tinha conhecido deveria vir a ser um dia a mais santa das regras da política de todos os tempos. Começou-se, então, a perceber que havia outros deveres em relação à Pátria ou ao Estado; outras virtudes, além das cívicas. A alma se ligou a outros objetos além da Pátria. A cidade antiga tinha sido tão poderosa e tirânica que tinha se tornado toda a finalidade do trabalho e virtude humana; a Pátria era a regra do belo e do humano e não havia heroísmo senão para ela.
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Entre as mudanças que se haviam produzido nas instituições, nos costumes, nas crenças, no direito, o próprio patriotismo mudou de natureza e isto foi uma das principais razões dos grandes progressos de Roma. Não podemos esquecer o que tinha sido o sentimento patriótico na primeira era das cidades gregas e romanas: era parte da religião daqueles tempos, se amava a Pátria porque se amava seus deuses protetores, porque nela estava seu altar, o fogo divino, as festas, as rezas e os hinos; e porque fora da Pátria não havia deuses nem culto. Este pátrio-sistema era em si uma fé, um sentimento piedoso. Porém, quando a casta sacerdotal perdeu seu domínio esta forma de patriotismo desapareceu junto com ela. O amor à cidade não pereceu, mas tomou nova forma. Não se amava mais à Pátria por suas religiões e seus deuses, mas por suas leis, instituições, direitos e segurança que ela dava a seus membros. O novo patriotismo não teve as mesmas conseqüências que o dos velhos tempos. Como o coração não se apegava mais ao altar, aos deuses protetores, ao solo sagrado, mas unicamente às instituições e às leis – que no estado instável de então mudavam freqüentemente - o patriotismo se tornou um sentimento variável e inconstante, que passou a depender mais das circunstâncias e viu-se sujeito às mesmas flutuações que sofria o próprio governo.
Já não se amava mais a Pátria além do que se amava o regime político prevalente. Se as leis fossem consideradas más, não havia mais apego a elas. O patriotismo municipal se debilitou e pereceu. A opinião de cada um passou a ser mais sagrada que a sua Pátria e o triunfo do seu partido passou a ser mais importante que a grandeza e glória da sua cidade. As pessoas passaram a mudar de sua cidade natal, se lá não vigorassem as instituições que amava, para outras nas quais as mesmas vigorassem. Começou-se, então, a emigrar voluntariamente, temeu-se menos o desterro. Já não se pensava nos deuses protetores e era mais fácil separar-se da Pátria. Passou-se, inclusive a buscar alianças com as cidades inimigas para fazer triunfar seu partido na sua cidade. Pouco gregos não estavam dispostos a sacrificar a independência municipal para ter a constituição que preferissem.
Quanto aos homens honestos e escrupulosos, as dissensões perpétuas de que eram testemunhas lhe faziam desgostar do regime local ou municipal. Não podiam, realmente, gostar de uma forma de sociedade em que era preciso lutar todos os dias e na qual o pobre estava sempre em guerra com o rico. Começava-se a sentir a necessidade de abandonar o sistema municipal para atingir outra forma de governo. Muitos pensavam estabelecer um poder soberano acima das cidades que supervisionasse a manutenção da ordem e que obrigasse àquelas pequenas cidades a viverem em paz.
No restante da Itália as coisas estavam no mesmo pé que em Roma, e esta tendência centralizadora fez a fortuna de Roma, diz Coulanges. A moral da história deste tempo é que Roma não teria alcançado a grandeza que a colocou na cabeça do mundo se o patriotismo nacional não tivesse substituído o local ou municipal [[12]]. Desta forma se delineavam as mudanças nas perspectivas da humanidade que deveriam conduzir à concepção de uma autoridade nacional e suprema, mais elevada que a do Estado municipal, e a liberdade do homem face à Pátria ou Estado formar um contraforte do novo edifício social.
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Mesmo assim o patriotismo, grande ou pequeno, não marcou o último progresso da humanidade. Faltava o aparecimento e o reinado do individualismo, da liberdade do homem, levantada e estabelecida face à Pátria e ao patriotismo co-existindo harmonicamente com a liberdade. Foi o caráter distintivo que as sociedades livres e modernas tomaram do espírito do cristianismo, fonte e origem da sociedade humana moderna, que transformou o mundo. Pode-se dizer que a sociedade de nossos dias deve ao individualismo assim entendido, todos os progressos da civilização. Neste sentido, não é temerário dizer que o mundo civilizado e livre é a obra do egoísmo individual, entendido de forma cristã: ama a Deus sobre todas as coisas e a teu próximo como a ti mesmo, santificando assim o amor a si mesmo simultâneo com o amor aos outros homens.
Não foram as liberdades da Pátria que engrandeceram as nações modernas, mas as liberdades individuais com as quais o homem criou e cultivou sua própria grandeza pessoal, fator elementar da grandeza das nações realmente grandes e livres, que são as do Norte de ambos os mundos. “A iniciativa privada fez muito, e muito bem feito”, disse Herbert Spencer. “A iniciativa privada desbravou, regou e fertilizou nossas campinas e edificou nossas cidades; descobriu e explorou minas, traçou rotas, abriu canais, construiu caminhos de ferros com suas obras de arte; inventou e levou à perfeição o arado, o tear, a máquina a vapor, a imprensa e inumeráveis outras máquinas; construiu nossos barcos, nossas imensas fábricas, nossos portos e seus implementos; criou os bancos, as companhias de seguros, os jornais, cobriu o oceano com uma rede de linhas a vapor e a terra com uma extensa rede elétrica. A iniciativa privada conduziu a agricultura, a indústria e o comércio à prosperidade atual e continua a expandir o caminho com rapidez crescente. Por que desconfiáis da iniciativa privada?” [[13]].
Tudo isto foi construído pelo egoísmo, quer dizer, pelo individualismo tanto na Inglaterra como na América. Tudo pode ser feito em nossos países por estes mesmo egoístas da Europa que aqui chegam como imigrantes, desde que lhes demos aqui a liberdade individual e a segurança que as leis têm em seus países de origem (porque esta liberdade lá significa segurança, se Montesquieu não entendeu mal as instituições inglesas).
Em nosso País terão as coisas ocorrido diferentemente da Inglaterra? A quem, senão à iniciativa privada, devemos a opulência de nossa indústria rural que é o manancial da fortuna do Estado e dos particulares? Fizeram mais por ela nossos melhores governos do que a energia, a perseverança e a conduta correta de nossos agricultores? Se faltam estátuas suficientes em nossas praças, são as estátuas a estes modestos operários de nossa grandeza rural sem a qual seria estéril a glória da nossa independência nacional.
Freqüentemente ocorreu que faltou a única cooperação que o Estado poderia ter dado ao progresso de nossa riqueza – a segurança e a defesa das garantias protetoras das vidas das pessoas, das propriedades, da indústria e da paz de seus habitantes – pois tais garantias foram interrompidas várias vezes pelas guerras e revoluções que não foram obra dos particulares. O mais das vezes as guerras e revoluções são oficias, quer dizer, produtos da iniciativa do Estado.
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Depois de ler o discípulo, leiamos o mestre de Spencer – o autor da Riqueza das Nações – Adam Smith, que vê a riqueza nascer inteiramente da iniciativa inteligente e livre dos indivíduos:
“É, às vezes, a prodigalidade e a má conduta pública, jamais dos particulares, as que empobrecem uma nação. Todo ou quase todo o crédito público é empregado em muitos países no sustento de pessoas que não produzem. São aquelas que compõem uma corte numerosa e brilhante, um grande estabelecimento eclesiástico, grandes esquadras e grandes exércitos, os quais em tempos de paz não produzem nada e que em tempo de guerra não adquirem nada para compensar o custo de sua manutenção. Desta forma, gente que não produz nada é mantida pelo produto do trabalho dos outros”.
“O esforço constante, uniforme e ininterrupto de cada particular para melhorar sua condição, princípio de onde emana originariamente a opulência pública e nacional, tanto quanto a particular, é amiúde bastante forte para fazer os negócios andarem cada vez melhor, e para manter o progresso natural, apesar da extravagância do governo e dos grandes erros da administração”.
“Semelhante ao princípio desconhecido da vida animal, ela restaura comumente a saúde e vigor da constituição, apesar não somente da doença como das absurdas receitas do médico” [[14]].
“O produto anual de suas terras e de seu trabalho (se referindo à Inglaterra) é, sem dúvida, muito maior hoje do que no tempo da restauração ou da revolução [[15]]. O capital empregado no cultivo das terras e em fazer crescer o trabalho deve ser, portanto, muito maior também. Apesar de todas as exações do governo, este capital foi se acumulando em silêncio e gradualmente, pela economia e boa conduta particular dos indivíduos e pelo esforço universal, contínuo e ininterrupto que os indivíduos realizavam para melhorar sua condição”.
“Este esforço, protegido pelas leis e pela liberdade de empregar sua energia da maneira mais vantajosa, é o que sustentou o progresso da Inglaterra em direção à opulência e à melhora em relação às épocas que a precederam, e o que continuará as sustentando no futuro, como se deve esperar”.
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Das observações contidas neste estudo resulta que o que habitualmente entendemos por Pátria e patriotismo, são bases e pontos de partida muito perigosos para a organização de um país livre, pois, longe de conduzir à liberdade, pode levar-nos ao pólo oposto, quer dizer, ao despotismo, por menos que haja desvios no caminho.
É muito simples o caminho pelo qual o extremo amor à Pátria pode alienar a liberdade do homem e conduzir ao despotismo pátrio do Estado. Aquele que ama a Pátria sobre todas as coisas não está longe de dar a ela todos os poderes e torna-la onipotente. Mas a onipotência da Pátria ou do Estado significa a exclusão e a negação da liberdade individual, quer dizer, da liberdade do homem que não passa em si mesma de um poder moderador do poder do Estado.
A liberdade individual é o limite sagrado no qual termina a autoridade da Pátria. A onipotência da Pátria ou do Estado é a única causa e razão de ser da onipotência do governo da Pátria, que lhe serve de personificação ou representação da ação de seu poder soberano.
Assim como vimos a invocação do patriotismo e da Pátria na Convenção Francesa de 1793 e na Ditadura de Buenos Aires de 1840 [[16]], também podemos vê-las em todas as violências contra as liberdades individuais para o uso e posse de sua vida, de seu lar, de sua opinião, de sua palavra, de seu voto, de sua conduta, de seu domicílio e sua locomoção. Todos os crimes públicos contra a liberdade do homem puderam ser cometidos, não só impunemente, mas também legalmente, quando cometidos em nome da Pátria onipotente invocada por seu Governo ilimitado. Não apenas a liberdade do homem pode ser incompatível com a liberdade da Pátria, como a primeira pode ser totalmente devorada pela outra. São duas liberdades diferentes, freqüentemente divorciadas e em conflito. A liberdade da Pátria é a independência de todo país estrangeiro. A do homem é a independência do indivíduo em relação ao governo de seu próprio País.
A liberdade da Pátria é compatível com as maiores tiranias e ambas podem existir num mesmo país. A liberdade do indivíduo deixa de existir quando a Pátria assume a onipotência no país. A liberdade individual significa literalmente a ausência de todo poder onipotente e ilimitado do Estado e do governo do Estado. As duas liberdades não são igualmente fecundas em seu poder civilizacional e para o progresso das nações. A onipotência ou o despotismo da Pátria, para ser fecundo em bens públicos, necessita preencher duas condições: primeiro, ser ilustrado; segundo, ser honesto e justo.
Nos novos Estados que ainda estão ensaiando a constituição de governos livres, a onipotência da Pátria é estéril, e a de seu governo destrutiva. A liberdade do indivíduo, em tais casos, é a mãe e nutriz de todos os progressos do país porque seu povo é formado por estrangeiros emigrados que trazem ao país a inteligência e a boa vontade em melhorar sua condição individual mediante a liberdade que suas leis lhes prometem e asseguram. Nos países que foram colônias recentemente criadas estas são débeis e pouco inteligentes para fazer sua civilização progredir. A onipotência da Pátria é excludente não apenas de toda a liberdade como de todo progresso público porque o trabalhador por excelência deste progresso é o indivíduo particular que sabe usar sua energia e seu poder naturais para conservar e melhorar sua pessoa, sua fortuna e sua condição de homem civilizado.
Ora, como a massa ou conjunto desses indivíduos particulares é o que denominamos povo na acepção vulgar desta palavra, segue-se que é ao povo e não ao Governo que está entregue, pelas condições das sociedades sul-americanas, a obra gradual de seu progresso e civilização. E a máquina favorita do povo para levar a cabo este trabalho é a liberdade civil ou social distribuída por igual entre seus indivíduos nativos ou estrangeiros que se associam no solo sul-americano. Se esta lei natural do engrandecimento individual se denomina egoísmo, é forçoso admitir que o egoísmo deve preceder ao patriotismo na hierarquia dos trabalhadores e servidores do progresso nacional.
O progresso do País marcha necessariamente em proporção direta ao número de seus egoístas inteligentes, trabalhadores e enérgicos, e das facilidades e garantias que seu egoísmo fecundo e civilizador encontram para exercer e se desenvolver. As sociedades sul-americanas estariam salvas e seu futuro em liberdade e progresso assegurado desde que este egoísmo inteligente – e não o patriotismo egoísta - fosse chamado a construí-lo. E como não é natural que o egoísmo sadio descuide de seu próprio engrandecimento sob pena de prejudicar seu interesse principal, pode-se afirmar que o progresso futuro da América do Sul estará garantido e assegurado se estiver sob a proteção vigilante do egoísmo individual que nunca dorme.
A onipotência da Pátria, convertida fatalmente em onipotência do Governo no qual se personaliza, é não somente a negação da liberdade, como também a negação do progresso social por suprimir a iniciativa privada que poderia operar este progresso. O Estado absorve toda a atividade dos indivíduos na medida em absorve todos os meios de trabalho e melhoramento. Para levar a cabo esta absorção, o Estado atrela a suas listas de empregados mais indivíduos que seriam melhor aproveitados se deixados entregues a si próprios.
O Estado intervém em tudo e tudo se faz por sua iniciativa na gestão de seus interesses públicos. O Estado se torna fabricante, construtor, empresário, banqueiro, comerciante, editor e abandona assim seu mandato essencial e único, que é o de proteger os indivíduos contra toda agressão interna e externa. Em todas as funções que não são da essência do governo, funciona como um ignorante e como um concorrente daninho aos particulares, piorando o serviço do país, longe de servi-lo melhor. O serviço da administração pública se torna indústria e ofício de vida para metade dos indivíduos que compõem a sociedade. O exercício dessa indústria administrativa e política, que passa a ser mero ofício de vida, toma o nome de patriotismo, pois adquire ares de serviço pela Pátria, apesar de ser o serviço de vida de cada um. Naturalmente toma, então, a feição de amor à Pátria – sublime sentimento essencialmente desinteressado – mas é o amor à mão que procura o pão para viver. Como não amar à Pátria como a sua própria vida, se é a Pátria que lhe faz viver?
Assim, o patriotismo não é religião como nos velhos tempos gregos e romanos, nem é sequer superstição ou fanatismo: muitas vezes é pura hipocrisia por suas pretensões de virtude, quando na realidade é apenas uma indústria de viver. E como os melhores industriais, os mais inteligentes e ativos, são os emigrantes de países civilizados da Europa, impedidos por lei de exercer a indústria-governo por sua condição de estrangeiros, o mau desempenho do industrialismo oficial os prejudica ou até impede a imigração e prejudica o povo do próprio País que não tem emprego nas repartições privilegiadas da administração política, aumentando o desemprego. Se muitos jovens em vez de disputar a honra de receber um salário como empregado, agente ou servidor assalariado do Estado, preferisse ficar senhor de si mesmo no governo de sua granja ou propriedade rural, a Pátria estaria colocada no caminho da grandeza, da sua liberdade e do verdadeiro progresso.
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Outro dos grandes inconvenientes da noção romana de pátria e do patriotismo para o desenvolvimento da liberdade é que, como a Pátria era originalmente um culto religioso, ela própria engendrava o entusiasmo e o fanatismo, o calor da paixão que cega. Daí derivam nosso cantos à Pátria entendidos de um modo místico que excedeu aos cantos religiosos do patriotismo antigo e pagão. O entusiasmo, sabe-se pela pena de Adam Smith vivendo numa Inglaterra livre, é o maior inimigo da ciência, por sua vez fonte de toda civilização e progresso. O entusiasmo é um veneno que, como o ópio, fecha os olhos e cega o entendimento; contra ele não existe outro antídoto que a ciência, dizia o rei dos economistas [[17]].
Na América do Sul, envenenada com este tóxico, o entusiasmo é visto como uma qualidade recomendável, longe de ser uma doença perigosa A liberdade é fria e paciente, de temperamento racional e reflexivo, não entusiasta, como o demonstra o exemplo dos povos saxões realmente livres. Os Americanos do norte, como os ingleses e holandeses, tratam seus negócios políticos não com o calor das coisas religiosas, mas como o mais prosaico da vida que são os interesses que a sustentam. Seu calor moderno jamais chega ao fanatismo. O entusiasmo engendra a retórica, o luxo da linguagem, o tom poético que servem tão mal aos negócios; todas as violências da frase são precursoras das violências e tiranias da conduta. Nestas pompas sonoras da palavra escrita e falada, peculiar do entusiasmo, some a idéia, pois esta só vive de reflexão e da fria ciência.
Por esta razão os americanos do norte, os ingleses e os holandeses não conhecem essa poesia patriótica, nem esta literatura política, que são enaltecidas pelos cantos de guerra que intimidam e afugentam a liberdade ao invés de atraí-la. Os americanos do norte não cantam a liberdade: a praticam em silêncio. Para eles a liberdade não é uma divindade: é uma ferramenta ordinária como a vassoura ou o martelo. Tudo que falta na América do Sul para ser livre como os Estados Unidos é ter um temperamento frio, pacífico, manso e paciente para resolver os negócios mais complicados da política, como também o possuem os ingleses e holandeses, o que não exclui o ardor às vezes necessário, mas um ardor que não chega ao fanatismo que cega e desvia do bom caminho. A França participa da liberdade à medida que adquire este temperamento realmente viril, quer dizer, frio.
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O entusiasmo pátrio é um sentimento peculiar da guerra, não da liberdade, que só se alimenta da paz. A própria guerra é travada mais fecundamente desde que mudou do entusiasmo para a ciência, porém continua sendo mais filha do entusiasmo do que da ciência.
Por qual vínculo misterioso se viram irmanadas na América do Sul as noções de Pátria, de liberdade, de entusiasmo, de glória, de guerra, de poesia, a que hoje de deve o tratamento com tanta paixão as questões públicas que permanecem indecisas precisamente porque não são tratadas com a serenidade e a calma que as tornariam tão expeditas e fáceis?
Não é difícil imaginar. Visto como foi considerada a pátria pelas sociedades gregas e romanas como uma instituição santificada, a Pátria e seu culto encheram os corações de entusiasmo inexplicável das coisas santas. Do entusiasmo ao fanatismo a distância foi curta. A Pátria foi adorada como uma espécie de divindade e seu culto produziu um entusiasmo fervente como o da própria religião. Na independência natural e essencial da Pátria em relação ao estrangeiro se fez consistir toda a liberdade e em sua onipotência se viu a negação de toda a liberdade individual capaz de limitar sua autoridade divina. Assim, o guerreiro foi o campeão da liberdade contra o estrangeiro, considerado como inimigo nato da independência da Pátria e a glória humana consistiu nos triunfos da luta sustentada na defesa da Pátria contra toda dominação de fora.
Portanto, o guerreiro tomou sua santidade da santidade de seu objetivo favorito, que foi a liberdade da Pátria, a defesa de seu solo sagrado e da santidade dos estandartes que são seus símbolos benditos, seu solo e seus altares, entendidos como o foram pelos gregos e romanos: no seu sentido religioso. Consideradas deste ponto de vista a Pátria ficou inseparável delas; com o mesmo entusiasmo que infundiam as coisas santas e sagradas. A Pátria onipotente e absoluta absorveu a personalidade do indivíduo e a liberdade da Pátria; eclipsando a liberdade do homem, não restou outro objetivo legítimo e sagrado que não a guerra em defesa da independência ou liberdade da Pátria em relação ao estrangeiro e sua onipotência em relação ao indivíduo.
Assim ocorreu com o nascimento dos novos Estados da América do Sul. San Martín, Bolívar, Sucre, O'Higgins, os Carrera, Belgrano, Alvear, Pueyrredón, todos haviam sido educados na Espanha e de lá trouxeram suas noções de Pátria e liberdade e estenderam a noção espanhola à liberdade americana: consistia somente na independência dos novos Estados com relação à Espanha, assim como a Espanha havia entendido em relação à França quando da guerra com Napoleão I.
Estes grandes homens foram sem dúvida campeões da liberdade na América, porém da liberdade no sentido da independência da Pátria em relação à Espanha; e se não defenderam também a onipotência da Pátria em relação a seus membros individuais, tampouco defenderam a liberdade individual entendida como o limite do poder da Pátria ou do Estado porque não compreenderam nem conheceram a liberdade neste sentido, que é seu sentido mais precioso. Como e onde poderiam ter aprendido? Da Espanha, que jamais a conhecera nos tempos em que eles lá se educavam?
Washington e seus contemporâneos representavam o oposto disto. Conheciam melhor a liberdade individual que a independência de seu país porque haviam nascido, crescido e vivido desde o berço desfrutando a liberdade do homem, mesmo durante a dependência da Inglaterra. Por isto, depois de conquistar a independência de sua Pátria, os indivíduos que eram membros dela se encontraram tão livres como haviam sido desde a fundação de suas povoações, e sua constituição como nação independente nada mudou, apenas confirmou as velhas liberdades anteriores que já conheciam e se davam tão bem como veteranos da liberdade.
A glória de nossos grandes homens foi mais deslumbrante porque nasceu do entusiasmo que produziu a guerra e as vitórias da independência da Pátria, a qual já nasceu onipotente com relação aos seus indivíduos, como havia sido a Pátria mãe sob o regime ilimitado de seus reis, que a personificavam. A glória onipotente de nossos grandes guerreiros da independência era oriunda do entusiasmo pela Pátria como o único objetivo, porque entendida no sentido quase divino que teve na velha Roma e na velha Espanha. Portanto, a glória de nossas grandes personalidades históricas da guerra de independência continuou eclipsando a verdadeira liberdade, que é a liberdade do homem, e a tal ponto chegou o entusiasmo por estes homens simbólicos que tomaram para si a liberdade como seus próprios altares.
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Este é o terreno em que se manteve até aqui a direção de nossa política orgânica e de nossa literatura política e social, nas quais a liberdade da Pátria eclipsou e legou ao esquecimento a liberdade individual que é o único fator de real unidade da Pátria.
De onde é derivada a importância da liberdade individual? De sua participação no progresso das nações. É uma liberdade múltipla e multiforme, que se decompõe e exerce sob diversas formas:
- Liberdade de querer, optar e escolher
- Liberdade de pensar, falar, escrever: opinar e publicar
- Liberdade de fazer e proceder
- Liberdade de trabalhar, adquirir e dispor do que é seu
- Liberdade de decidir, de sair ou entrar em seu país, de locomoção e de circulação
- Liberdade de consciência e de culto
- Liberdade de emigrar ou permanecer no seu país
- Liberdade de testar, contratar, de alienar, de produzir e adquirir
Como ela resume o ciclo da atividade humana, a liberdade individual que é a liberdade capital do homem, é o principal e imediato instrumento de todos os progressos, de todas as melhorais, de todas as conquistas da civilização, em toda e qualquer nação do mundo. Porém, a rival mais temível desta dádiva dos povos civilizados é a Pátria onipotente e ilimitada que se personifica fatalmente pelos governos ilimitados e onipotentes, que não desejam a liberdade individual porque ela é o limite sagrado de sua própria onipotência. Convém, entretanto, não esquecer como a liberdade individual é a nutriente da pátria, tornando a Pátria o paladino das liberdades do homem, membro essencial da própria Pátria.
Porém, qual pode ser a Pátria mais interessada em conservar nossos direitos pessoais senão aquela da qual nossa pessoa é parte e unidade essencial?
Numa palavra final: a liberdade da Pátria é uma das faces da liberdade do homem civilizado, fundamento e fim de todo o edifício social da raça humana.
[1] N. do T. – Mariano Moreno, adepto de Rousseau, foi membro da primeira junta governativa criolla argentina criada pela revolução de 25 de Maio de 1810. Secretário para Assuntos de Governo e Guerra, expulsou o Vice-Rei de Espanha e mandou executar Liniers e outros contra-revolucionários.
[2] N. do A. - Cf. “A Riqueza das Nações” de Adam Smith
[3] N. do T. – Certamente tudo isto se aplica ipsis literis a Portugal e suas colônias.
[4] N. do T. – Refere-se sempre à Revolução de 25 de Maio de 1810, salvo nota em contrário.
[5] (Ver nota 3)
[6] N. do T. – Referência a Fustel de Coulanges em sua obra prima La Cité Antique (em edição brasileira da Martins Fontes e UnB, 1981: A Cidade Antiga)
[7] N. do T. – Em Latim no original: por altares e fogos
[8] N. do A. – De Coulanges. Cité antique
[9] N. do A. – Idem, ibid.
[10] Século XVIII Alberdi falava no século XIX.
[11] N. do A. - “Cité Antique”, pág. 415 (da edição francesa)
[12] N. Do A. - De Coulanges, Livro V. Cap. II.
[13] N. do A. - “Ensayos de Moral, Ciencia y Estética”, por Herbert Spencer
[14] N. do A. - Adam Smith. “Riqueza de las Naciones”, Livro II, Cap. V.
[15] N. do T. – Referência à Restauração Stuart após o Protetorado de Cromwell (1660) e à Revolução Gloriosa (1688).
[16] N. do T. – Do Governador de Buenos Aires Juan Manoel de Rosas, derrubada em 1852.
[17] N.do A. - Adam Smith. “Riqueza de las Naciones”, Libro V, Cap. I.