O Pogrom da Noite Passada em Amsterdã
Fãs de futebol israelenses foram emboscados, espancados e imploraram aos seus agressores: "não judeus, não judeus". Eu cresci na Holanda. Não fiquei surpreso.
Por David de Bruijn 8 de novembro de 2024
Tradução: Heitor De Paola
Enquanto a comunidade judaica de Amsterdã se juntava a autoridades locais para comemorar o 86º aniversário da Kristallnacht na sinagoga judaico-portuguesa da cidade — estabelecida por judeus que escaparam da Inquisição — um pogrom estava acontecendo do lado de fora. Após uma partida de futebol entre o clube holandês Ajax e o visitante Maccabi Tel Aviv, torcedores judeus e israelenses do clube visitante foram emboscados e espancados nas ruas e becos da cidade.
Imagens mostram um torcedor de futebol israelense sendo atingido por um carro, dando cambalhotas no para-brisa. Mais imagens mostram a cena no centro de Amsterdã, onde israelenses estão implorando aos seus agressores, "não judeus, não judeus". E eles são espancados sem piedade.
Assista no original às imagens da violência
Em vídeo de outros ataques na noite passada, uma vítima é atingida e fica ferida no chão, aparentemente inconsciente. Um pai pode ser visto fugindo com seu filho . Um homem pula em um dos canais de Amsterdã para escapar de seus agressores. Na gravação, onde ele é forçado a dizer "Palestina Livre", seus agressores riem e zombam que ele é um "judeu do câncer" — uma calúnia clássica em holandês, onde tanto as doenças quanto a etnia judaica são usadas como humilhações.
Muito sobre as origens do ataque ainda não está claro, mas os primeiros relatos sugerem que ele foi realizado por gangues de jovens da comunidade holandesa marroquina e holandesa turca, e foi orquestrado com antecedência . Israelenses visitantes relatam terem sido emboscados por grupos de 10 a 15 agressores mascarados em vários becos. Israelenses em fuga disseram a Elad Simchayoff do Canal 12 que "a polícia de Amsterdã instruiu [os israelenses] a não irem de táxi. Policiais disseram aos fãs que os taxistas da cidade estão ajudando a organizar os tumultos e auxiliando as gangues".
Antes que as autoridades locais interviessem significativamente , dispersando os manifestantes e prendendo os agressores, Israel anunciou que enviaria dois aviões e uma equipe de resgate para Amsterdã para resgatar os israelenses presos. (Israel finalmente retirou a missão.) "Falhamos com a comunidade judaica da Holanda durante a Segunda Guerra Mundial, e ontem à noite falhamos novamente", o rei holandês Willem-Alexander teria dito ao presidente de Israel, Isaac Herzog, em um telefonema na manhã de sexta-feira.
A vergonha que esses eventos trazem para Amsterdã — onde 75% dos judeus de Amsterdã morreram no Holocausto, e que se orgulha de ser a cidade de Anne Frank que, apesar de ter sido traída e assassinada, foi acolhida pela cidade como um emblema de sua atitude liberal de tolerância do pós-guerra — não deve passar despercebida a ninguém.
Muitos ficam chocados, imaginando como isso pôde acontecer na Holanda.
Para mim, o que é chocante é a perplexidade deles.
Cresci em Haia, onde o antissemitismo real e abundante, de epítetos nas ruas a ameaças físicas à segurança da comunidade, fazia parte da nossa vida diária. Quando era um jovem garoto, lembro vividamente de como os hooligans de futebol de Haia — ferozmente opostos ao Ajax, o time "judeu" de Amsterdã — andavam pelas ruas sob uma faixa dizendo "Estamos caçando judeus". (De fato, durante toda a minha vida, os estádios de futebol no meu país natal foram preenchidos com cânticos escabrosos como "Hamas, Hamas, todos os judeus a gás!" e "Meu pai estava nos comandos, minha mãe estava na SS, gostamos de queimar judeus, porque os judeus queimam melhor.")
No ensino médio, crianças marroquinas de segunda ou terceira geração apontavam e sibilavam "Psst, psst, esse é um judeu, esse é um judeu!" enquanto passavam em suas bicicletas.
Mas o mais impactante foram as inúmeras medidas de segurança que nossa comunidade teve que tomar. Vista de frente, a sinagoga de Haia não é reconhecível, duas grossas portas verdes apresentam uma fachada fechada para a rua. Atrás dessas portas há portas de vidro que abrem somente quando uma permissão adicional é dada. Todas as janelas são feitas de vidro à prova de balas. Um posto policial permanente guarda a sinagoga. Em Amsterdã, a escola primária judaica tem níveis ainda mais distópicos de proteção, escondida atrás de várias camadas de pregos de metal e cercas. De fora, a visão da escola é totalmente fechada. (Mesmo enquanto escrevo isso, sinto-me desconfortavelmente consciente de não revelar nenhum detalhe sensível de segurança.)
A autoproteção era uma parte constante — e, para mim, natural — da vida judaica. Levar jovens para um acampamento de verão no norte da Frísia significava trazer uma equipe de segurança dedicada e, quando possível, manter em segredo o fato de que eram crianças judias se reunindo ali.
Ataques violentos e antissemitas têm se tornado ocorrências cada vez mais regulares. Em maio, um estudante da Universidade de Amsterdã, um jovem, foi atacado por um manifestante em um keffiyeh, atingido na cabeça com uma tábua de madeira. Em agosto, uma estátua de Anne Frank foi desfigurada — pela segunda vez — com pichações anti-Israel. Hoje, andar por aí com uma kipá na Holanda é um ato que requer coragem.
À medida que a situação piorava ao longo dos anos — motivando alguns, inclusive eu, a se mudar, outros a se ajustarem e muitos a se preocuparem — um dos aspectos mais dolorosos foi a maneira como a comunidade judaica foi gaslighted. A sociedade holandesa repetidamente disse ao seu remanescente judeu pós-Holocausto — e a si mesma — que "nunca mais" não era meramente uma promessa concreta, mas um conceito central da moralidade holandesa moderna. No entanto, a cultura dominante das comunidades de imigrantes do país provou ser manifestamente hostil a essa visão de mundo — e aos judeus.
Para os norte-africanos que vivem na Holanda, a história judaica dominante do século XX não é Auschwitz, é Israel, que em sua concepção distorcida é um empreendimento criminoso ilegítimo e unidirecional direcionado a uma população inocente. Nem — e isso é crucial — é meramente uma atitude sobre um conflito. Eles acreditam que é o crime do século XX, conferindo culpa máxima ao povo judeu. “Palestina” é uma palavra sentida como portadora da gravidade do “Holocausto”, invertendo grotescamente a percepção da experiência judaica.
Para os judeus da Holanda, essa realidade é palpável há décadas. No entanto, nada — nenhum político, nenhuma política — alterou essa realidade. Após cada ataque violento — como provavelmente será o caso agora — a resposta política tem sido um caldo em temperatura ambiente de subsídios, centros de jovens, fóruns de diálogo, visitas a clubes de aposentados islâmicos e diálogo inter-religioso.
Então não me surpreendeu quando veículos de comunicação internacionais, como a Associated Press e o The New York Times , cobriram esse ataque generalizado como se fosse o resultado infeliz, mas talvez esperado, da conduta dos fãs israelenses antes e durante a partida, como supostamente provocar os fãs do Ajax com slogans inapropriados. Além disso, a AP escreveu que o ataque ocorreu após uma bandeira palestina ter sido "arrancada de um prédio em Amsterdã na quarta-feira", e os manifestantes ficaram furiosos porque "as autoridades proibiram uma manifestação pró-palestina perto do estádio". O Times originalmente atribuiu o ataque a diferenças sobre esporte e provocações, como "violência ligada a uma partida entre times holandeses e israelenses", e relatou que "as tensões nas horas que antecederam a violência" foram em parte causadas por "um homem [sendo ouvido] dizendo em hebraico, 'O povo de Israel vive', enquanto outros gritavam cânticos antipalestinos usando palavrões". (O Times aparentemente editou furtivamente suas reportagens inúmeras vezes desde a publicação.)
Em outras palavras, se você lesse apenas os relatórios iniciais, você poderia pensar que os israelenses começaram, ou pelo menos estavam esperando por isso.
Mais imagens da violência antissemita em Amsterdã no original
O que os repórteres e a mídia não conseguem entender é que esse foi um ataque aos fãs de futebol israelenses, mas não um feito por hooligans do futebol. O próprio time do Ajax é amigo dos judeus — os fãs do Ajax de Amsterdã são carinhosamente (e às vezes nem tanto) chamados de “super judeus”, e o Ajax é entendido como o “time judeu”, então faria pouco sentido que os torcedores do Ajax atacassem judeus ou israelenses por sua etnia — mesmo que sejam fãs de um time adversário.
Não, isso foi simples: de acordo com os relatos de testemunhas e vítimas, foi um ataque de comunidades muçulmanas de imigrantes contra israelenses e judeus.
Entre 1977 e 2002, mais de 700.000 imigrantes e refugiados de países islâmicos se estabeleceram na Holanda, agora compondo cerca de 5% da população holandesa. Por décadas, questões envolvendo a integração dessas minorias têm irritado paixões e dominado a política holandesa — primeiro na forma do líder populista assassinado Pim Fortuyn; depois o cineasta Theo van Gogh, que foi assassinado em plena luz do dia há 20 anos neste mês; e mais recentemente Geert Wilders, que vive sob proteção policial permanente.
Em outras palavras, o antissemitismo moderno na Holanda tem sido, nas últimas décadas, uma aflição das comunidades imigrantes e seculares, sobre as quais poucos se importam em fazer alguma coisa. Na sociedade secular holandesa, os professores acham cada vez mais difícil ensinar a história recente do país — sua cumplicidade no Holocausto — em escolas com grandes comunidades imigrantes. (Como o Algemeen Dagblad relatou já em 2015, se um professor diz “Holocausto”, os alunos respondem: “Isso é tudo besteira” e “Você está do lado dos judeus.”)
O mais alarmante de tudo é a transformação das pessoas que deveriam nos proteger: a polícia. No mês passado, policiais holandeses indicaram que não se sentiriam confortáveis protegendo instituições judaicas por suas “ objeções morais ” à guerra de Israel contra o Hamas em Gaza.
Certamente a ironia sombria dos holandeses se recusando a proteger os judeus de seu país — cidadãos ou visitantes — não passaria despercebida a ninguém. Mas perdida, parece que sim. Um pogrom em 2024 será suficientemente horrível para acordar a Europa?