O clima global mudou desde a escolha do Papa Francisco, e o zeitgeist do Papa Bento XVI parece estar voltando em um mundo decepcionado com as promessas vazias do progressismo.
Hoje, o problema é que a religião, na maioria de suas formas, tenta imitar a filosofia, que é o reino da dúvida, ou substituir a ideologia como meio de organizar a ação política.
A questão é: religião em qual das suas muitas formas?
Há aqueles que veem o querigma como uma concepção poética, com foco no catecismo, ou em sua versão islâmica, a Sharia, como um meio de controle e dominação social e política. Há também aqueles que, tendo afirmado o querigma, permitem que o elástico seja puxado na direção oposta o máximo possível. O problema é que, em algum momento, o elástico pode se romper.
O clima global mudou desde a escolha de Francisco, e o zeitgeist de Bento parece estar retornando em um mundo decepcionado com as promessas vazias do progressismo.
Em 2013, quando um cardeal pouco conhecido da Argentina foi eleito Papa da Igreja Católica, assumindo o título de Francisco, muitos se perguntaram em que direção ele poderia seguir os passos de São Pedro.
A eleição foi uma surpresa após a decisão sem precedentes do Papa Bento XVI de abdicar do pontificado. Bento XVI, um alemão, havia se revelado um pontífice conservador focado na doutrina no que ele chamou de "um tempo de convulsões". Era a época em que o globalismo estava em ascensão e todas as religiões pareciam estar na defensiva diante das forças políticas e culturais que defendiam o multiculturalismo e o secularismo.
Em seu livro Valores em tempos de convulsão, Bento XVI falou dos "três mitos" que ameaçam a humanidade: a ciência, o progresso e a liberdade, que, transformados em absolutos, pretendem substituir a fé religiosa.
Uma vez eleito, o Papa Francisco revelou-se no extremo oposto de Bento XVI no que diz respeito às suas respectivas visões de mundo. De certa forma, Bento XVI, afastando-se do cotidiano da política, concentrou-se na doutrina central de sua fé, poderosamente expressa em seu outro livro, Jesus de Nazaré .
O Papa Francisco, no entanto, rapidamente demonstrou que desejava desempenhar um papel político na esperança de injetar seus valores religiosos no debate global. Deixando a doutrina para seu antecessor, ele utilizou o catecismo ou os rituais flexíveis da fé como modelo para suas posições políticas, que ele explicitou em um livro composto por entrevistas com dois jornalistas italianos.
Como Francisco foi o primeiro padre jesuíta a se tornar Papa, não foi surpresa que, fiel à sua missão evangelizadora como um "soldado de Cristo", sua ênfase fosse garantir o maior público possível para a Igreja Católica, em vez de defender a forma mais rígida de doutrina em uma era de relativismo cultural.
Ele aprendeu muito com seus antecessores mais recentes: João Paulo II e Bento XVI. O primeiro enfatizou a dimensão política de sua missão, especialmente na luta para ajudar a Europa Central e Oriental a derrubar a Cortina de Ferro. Quando a Guerra Fria terminou com a desintegração do Império Soviético, João Paulo II estava entre os vitoriosos da história, com seu conservadorismo doutrinário convenientemente posto de lado.
Em contraste, Bento XVI, teólogo por formação e temperamento, colocou ênfase em questões doutrinárias em uma tentativa corajosa de salvar a Igreja Católica dos estragos do politicamente correto, do wokeismo e do multiculturalismo.
Como resultado, muitos católicos não o acolheram com simpatia, enquanto os não católicos o consideraram anacrônico. Francisco decidiu se inspirar em João Paulo II, em vez de Bento XVI. A diferença era que João Paulo II era um papa político de centro-direita, enquanto Francisco se revelou de centro-esquerda. Isso encorajou alguns dos críticos de Francisco, da direita, a retratá-lo como um companheiro de viagem ou até mesmo um comunista.
Em seu livro, Francisco admitiu que se sentia atraído por temas comunistas, se não por políticas propriamente ditas. Aliás, o único livro político que ele cita é "Nossa Palavra e Propostas", do escritor comunista argentino Leônidas Barletta. "Ajudou na minha formação política", disse Francisco em seu livro. Francisco aprofundou seu perfil "progressista" com uma lista de seus autores favoritos, incluindo o poeta alemão Friedrich Hölderlin, o romancista italiano Alessandro Manzoni, o romancista russo Fiódor Dostoiévski, o místico belga Joseph Maréchal e, por último, mas não menos importante, o ícone literário argentino, Jorge Luis Borges, nenhum dos quais poderia ser rotulado como esquerdista.
Francisco considerava o "capitalismo liberal" imoral e disse que sentia alguma simpatia pela "teologia da libertação" dos padres guerrilheiros latino-americanos da década de 1960, ao mesmo tempo em que insistia que "nunca foi comunista".
De fato, ele incluiu o comunismo, juntamente com o capitalismo desenfreado, o nazismo e o liberalismo em sua lista de ideologias totalitárias. E, ainda assim, aponta o secularismo como o principal inimigo da fé. "Há uma negação de Deus devido ao secularismo, ao egoísmo egoísta da humanidade", afirmou. Ao longo de seu pontificado, Francisco lutou com as "questões sociais" que dominaram o debate público no Ocidente nas últimas décadas, entre elas o aborto, o controle de natalidade, o divórcio, os casamentos entre pessoas do mesmo sexo, o abuso sexual por parte de funcionários e prelados da Igreja e o celibato para padres. Nesse ponto, Francisco enfrentou uma dificuldade real.
Se ele tivesse simplesmente reafirmado as posições tradicionais da Igreja, como fez Bento XVI, teria enfraquecido seu status de "Papa progressista". Se, por outro lado, tivesse adotado a posição "progressista", teria antagonizado muitos em seu rebanho.
Francisco lidou com esse dilema no estilo jesuíta clássico de agarrar o touro pelos dois chifres.
Fazendo eco a Bento XVI, ele afirmou que o que importava era a narrativa central do cristianismo, cujo termo técnico é querigma. Além disso, temos o que Francisco chamou de "catecismo", que, no sentido que ele usou, diz respeito ao comportamento e à organização social.
Curiosamente, ele raramente mencionava o dogma, a ponte entre o querigma e o catecismo. Assim, questões como o aborto, o casamento gay e a Eucaristia para divorciados não afetam o querigma. Quanto ao celibato para padres, é "uma disciplina, não uma questão de doutrina", afirmou, e, portanto, poderia ser abandonado no futuro.
Um ano antes de sua morte, Francisco publicou um panfleto sobre literatura, aconselhando seus fiéis a ler o máximo possível, mesmo obras de não crentes ou adversários da fé. Foi uma atitude ousada de um homem que herdou o cargo que criou o infame Índice de livros a serem proibidos e queimados, que permaneceu em vigor até 1966. Além de "progressista", Francisco também era otimista.
"A consciência moral de diferentes culturas progride", afirmou, lembrando-nos de como "males" como o incesto, a escravidão e a exploração, por exemplo, foram outrora, em diferentes fases da história humana, tolerados por todas as culturas e até religiões, mas agora são rejeitados com repulsa por todos. Mas será que o "progresso moral" humano, se é que existe, é tão linear quanto o Papa Francisco parecia acreditar? O panorama intelectual de Francisco era dominado por ideias que remontavam à Atenas antiga, e não a Jerusalém. Ele sentia-se mais à vontade na companhia de Aristóteles do que dos Padres da Igreja. O único que ele cita é o quase aristotélico Santo Agostinho, ignorando as posições contrastantes de Jerônimo e Tertuliano, entre outros. A Igreja, ou qualquer organização religiosa formal, é necessária para a salvação? Francisco não pôde deixar de responder com um sonoro "sim".
No entanto, ele amenizou esse "sim" ao lembrar que, quando jovem, sonhava em se tornar missionário no Japão, onde o cristianismo havia conseguido sobreviver e, em certa medida, prosperar sem padres e sem nenhuma organização por mais de dois séculos. Não sei se Francisco leu o fascinante romance "Silêncio", do romancista japonês Shūsaku Endo, que trata precisamente desse assunto. Endo mostra que, mesmo sob as piores condições de tortura e desespero, os seres humanos buscam na fé religiosa uma medida de certeza sobre o certo e o errado, o bem e o mal. Hoje, o problema é que a religião, na maioria de suas formas, tenta imitar a filosofia, que é o reino da dúvida, ou substituir a ideologia como meio de organizar a ação política.
Francisco repetiu a afirmação de André Malraux, de que o século XXI será "religioso ou não será".
A questão é: religião em qual das suas muitas formas?
Há aqueles que veem o querigma como uma concepção poética, com foco no catecismo, ou em sua versão islâmica, a Sharia, como um meio de controle e dominação social e política. Há também aqueles que, tendo afirmado o querigma, permitem que o elástico seja puxado na direção oposta o máximo possível. O problema é que, em algum momento, o elástico pode se romper.
O próximo Papa dará continuidade à agenda "progressista" de Francisco ou retornará ao caminho "tradicional" de Bento XVI? Um provérbio italiano diz "morto un papa, se ne fa un altro" (A morte de um Papa gera outro).
Como a maioria dos 135 cardeais do conclave encarregados de eleger o próximo Papa foram nomeados por Francisco, pode-se presumir que eles escolheriam alguém para dar continuidade ao seu legado "progressista". No entanto, seguindo o conselho de São Mateus de "não presumir nem desesperar", não se pode ter certeza.
O clima global mudou desde a escolha de Francisco, e o zeitgeist de Bento parece estar retornando em um mundo decepcionado com as promessas vazias do progressismo.
Portanto, não se surpreenda se os cardeais tiverem dificuldade em escolher entre o querigma e o catecismo.
Amir Taheri foi editor-chefe executivo do jornal diário Kayhan no Irã de 1972 a 1979. Ele trabalhou ou escreveu para inúmeras publicações, publicou onze livros e é colunista do Asharq Al-Awsat desde 1987.
O Gatestone Institute gostaria de agradecer ao autor por sua gentil permissão para republicar este artigo em um formato ligeiramente diferente do Asharq Al-Awsat. Ele gentilmente atua como presidente do Gatestone Europe.