PÁGINA UM. O EXCEPCIONAL JORNAL INDEPENDENTE DE PORTUGAL!
Jornalismo: o contraditório vale mais do que os factos?
O jornalismo é, antes de tudo, um exercício de rigor e de compromisso com a verdade factual. E de confiança com os leitores. O jornalismo verdadeiro e íntegro não é uma caixa de ressonância para declarações convenientes, nem uma plataforma para relativizações artificiais que, sob a capa da imparcialidade, apenas servem para diluir evidências concretas. Contudo, nos últimos tempos, tem-se tentado impor uma ideia perniciosa ao exercício do jornalismo: a obrigatoriedade de um alegado “direito ao contraditório”, como se o dever de comprovar factos fosse substituível pela necessidade de garantir espaço a quem se sente desconfortável com a sua revelação.
A Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), que teoricamente deveria defender a liberdade editorial da imprensa, volta e meia incide as suas deliberações sobre este falso problema, ao considerar que um jornal deve conceder destaque a todas as opiniões em pé de igualdade, mesmo quando os factos noticiados se sustentam em provas documentais inequívocas. Sucedeu agora, mais uma vez, com um jornalista promíscuo da TVI, André Carvalho Ramos, que teve – e tem agora de novo – o seu nome associado a uma formação (não-universitária) de media training dirigida a gestores e executivos, organizada por uma agência de comunicação dirigida pelo filho deo ex-primeiro-ministro António Costa.
A ERC censurou o PÁGINA UM por, apesar das evidências documentais, achar que alegado “direito ao contraditório” deveria ter sido respeitado numa investigação que envolvia três dezenas de jornalistas, alguns dos quais (14) até foram identificados pelo próprio reguador.
A exigência do “direito ao contraditório” é particularmente absurda quando aplicada a este caso concreto: uma peça sobre promiscuidade jornalística, onde cada menção é acompanhada por documentos que sustentam as ligações de jornalistas a entidades que deveriam escrutinar.
Ou seja, apesar de o trabalho se basear em evidências objectivas, a ERC decide insistir que deveria ter sido dado espaço a cada um dos visados para apresentar uma versão alternativa – ainda que não haja margem para interpretação de documentos e provas que atestam o que foi relatado. Os factos existem, mas podem ser negados ou esvaziados por uma simples declaração dos visados.
Esta ideia de “direito ao contraditório” aplicado de forma absoluta ao jornalismo não encontra sequer sustentação na Lei da Imprensa nem no Código Deontológico dos Jornalistas. Aquilo que tanto a legislação como o código exigem é que os factos sejam comprovados, ouvindo as partes atendíveis – e deduz-se que essa ‘audição’ serve para confirmar os factos, e nem tal implica que se tenha que transpor todos os comentários. Aquilo que a lei e o código não dizem é que cada notícia tenha de ser um palco de encenações onde qualquer denunciado tenha a oportunidade de relativizar ou distorcer uma verdade documentalmente sustentada.
Nem a lei nem o código dizem, em parte alguma, ser uma obrigação de um jornalista é ouvir todos os envolvidos. Essa é uma escolha editorial, sob a qual pode pender responsabilidade – mas é uma escolha que jamais pode implicar a visão maniqueísta da ERC: há contraditório, há rigor; não há contraditório, não há rigor. Note-se o absurdo: invente-se um facto e oiça-se todas as partes, a ERC dá o OK; comprovem-se facto e decide-se se se mostra relevante ouvir todas as pessoas, e a ERC censura.
A ERC tem de terminar com este tipo de ingerências editoriais, até porque a sua visão é enviesada, e pouco lhe importa a veracidade dos factos. Aquilo que se estabelece é que um órgão de comunicação social tem o dever de assegurar a veracidade das informações publicadas e que os factos apresentados sejam suportados por elementos objetivos – o que, num trabalho baseado em documentos, é plenamente garantido, como tem sido apanágio do PÁGINA UM.
A imposição editorial feita pela ERC sobre esta matéria do “contraditório” não apenas representa uma interferência indevida na liberdade editorial como também pode distorcer a própria percepção do leitor. Se um jornalista revela um facto sustentado por provas documentais e é obrigado a publicar uma resposta de alguém que, sem desmontar a prova, apenas contesta ou nega o seu conteúdo, cria-se artificialmente uma dúvida onde esta não deveria existir. O jornalismo não pode ser refém de uma falsa imparcialidade, que dá o mesmo peso ao documento que prova e à declaração que desmente sem fundamento. O jornalista é um mediador e intérprete da realidade; não um mero pé de microfone.
Se levássemos esta lógica ao extremo, seria necessário, por exemplo, que:
• Sempre que se noticiava uma acusação judicial, fosse obrigatória a audição do arguido por parte do jornalista, independentemente das provas nos autos.
• Quando um sindicato denunciasse uma política ou medida do Governo, o mesmo espaço teria de ser dado ao Governo, sob pena de “falta de contraditório”.
• Sempre que uma peça se baseasse em estatísticas criminais, se tivesse de ouvir simultaneamente polícias e ladrões para dar “as duas versões”.
Este absurdo revela a falácia da argumentação: não é função do jornalismo criar um equilíbrio artificial entre factos e versões. A função do jornalismo é interpretar, conferir, validar e apresentar os factos da forma mais clara e rigorosa possível, assegurando que provas físicas e documentos oficiais não sejam diluídos por declarações defensivas que apenas visam confundir o público.
É importante ainda notar que o contraditório não se confunde com o direito de resposta. A Lei da Imprensa salvaguarda todas as partes, prevendo expressamente este último, permitindo que qualquer visado por uma notícia possa publicar a sua posição quando se sinta injustiçado ou prejudicado.
O PÁGINA UM – e eu, em particular – já exerceu esse direito noutros órgãos de comunicação social; já publicámos direitos de resposta (como, aliás, nesta edição). Mas isso não significa que o jornalista tenha a obrigação prévia de lhe dar espaço na construção da notícia, sobretudo quando os factos apresentados são incontroversos e se baseiam em documentação robusta.
A exigência da ERC não é apenas errada do ponto de vista legal e jornalístico – é também profundamente perversa na forma como condiciona o trabalho dos jornalistas. O seu efeito prático é claro: criar obstáculos para que determinadas verdades sejam ditas. Se cada jornalista souber que, para noticiar um facto comprovado, terá de gastar tempo e espaço com reações que nada acrescentam ao esclarecimento do público, a tendência natural será evitar determinados temas. E este, no fundo, parece ser o objetivo – desincentivar a investigação, protegendo aqueles que prefeririam que certos factos permanecessem desconhecidos.
A liberdade de imprensa não pode ser condicionada por exigências formais – melhor dizendo, artificiais – que nada acrescentam ao rigor do jornalismo. O contraditório pode ser útil e desejável em muitos casos – e o PÁGINA UM usa-o, preferindo chamar-lhe comentário -, mas a sua imposição como regra cega transformará o jornalismo numa arena de relativismo, onde a verdade dos factos é apenas mais uma “opinião” entre tantas.
No PÁGINA UM, não caímos nesse jogo, mesmo correndo o risco de sucessivis bitates da ERC sobre a forma de deliberações que nem sequer podem ser contestadas em tribunal, porque a esse nível valem como meras opiniões, mesmo se irritantes. Uma coisa é certa e garantimos aos leitores; tudo o que publicamos como notícia é sustentado por provas. Em factos. E o jornalismo são factos, interpretações e comentários; não um palco do comntraditório.